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Século da Infância
Publicado no Jornal do Commercio em19 de outubro de 2021
Flávio Brayner*
Um leitor me pergunta se o Dia da Criança não deveria ser substituído pelo Dia da Infância, sem me apresentar nenhuma razão para tal proposta! Vou tentar, aqui, uma resposta.
Em primeiro lugar, são duas coisas completamente diferentes - criança e infância: a primeira diz respeito a uma etapa biológica da vida, comum a todos nós, e que pode ser medida pela idade. Já a infância é uma determinada concepção que temos das crianças e, na verdade, é uma "invenção" recente, datando da época de Rousseau (séc. XVIII). Criança sempre existiu; infância não! Assim como a "adolescência" também é um fenômeno literário recente (Goethe, Keats, Joyce, Bukowsky, Salinger...).
Rousseau mudou a representação que fazíamos das crianças: antes vistas como um estorvo, um adulto em miniatura ou um "escândalo filosófico", a partir do Romantismo nós a vemos como um ser frágil, natural, espontâneo, necessitando de proteção e carinho, alvo de um vestuário, de uma mobília, de brinquedos especiais e, até, de uma "literatura" específica.
O professor da Universidade de New Hampshire, Joshua Meyrovitz, mostrou que o século XVI promoveu a separação entre "vida "adulta" e "vida infantil", apartando estes mundos através da invenção da imprensa! Os contos de fada (orais) não eram dirigidos às crianças, pois elas não faziam parte de um mundo separado do dos adultos (elas participavam das guerras, bebiam nas tabernas): foi com o aparecimento de uma literatura infantil que aqueles mundos se afastaram, com os livros proibidos para as crianças e colocados nas partes altas das bibliotecas.
A vida adulta passou a ser cercada de segredos e de "iniciações", sobretudo nos países em que a alfabetização das massas se expandiu após a Reforma Protestante: estava se criando o mundo protegido da infância! Mas, o que a literatura separou, diz aquele professor, a nossa época visual e auditiva uniu: pelas redes sociais, internet, TV's a cabo, nossas crianças têm acesso a um mundo de "segredos" antes exclusivo dos adultos, com sua violência, sexo, linguagem...
Quase dissolvida a fronteira que nos separava, não é surpreendente que nossos filhos reivindiquem autonomia antes de terem independência, ou que se sintam à vontade para contestar qualquer autoridade. E que, por outro lado, encontremos adultos que se recusam a "crescer", evitando as responsabilidades próprias da vida madura e atraídos pelo fantasia da juventude física e suas "repaginações" estéticas! Uma mudança radical naquilo que um dia que entendíamos como "choque de gerações"!
Professor da UFPE.